sexta-feira, 18 de junho de 2010

O horror ao incesto

Naele Ochoa Piazzeta*

Existem crimes que, pela violência explícita ou sutil com que se revestem, causam-nos abalo moral de maiores proporções do que as condutas humanas que, de regra, mais razões possuem para tanto.

Quem de nós deixa de reconhecer a crueldade do roubo seguido de morte? Ou do homicídio praticado por filhos contra os pais e vice-versa?

Todavia, assombra-nos e persegue-nos o horror do incesto, por seu caráter antinatural, pela sua patologia evidente, pelo atentado contra os princípios básicos segundo os quais nos reconhecemos humanos.
Para uma análise preliminar do incesto, deve-se levar em conta que estamos inseridos numa cultura histórica e socialmente datada, sendo ela a nos fornecer os modelos de conduta a serem seguidos pela sociedade. Esta, enquanto corpo orgânico estruturado em todos os níveis da vida social, sustenta-se na reuni&a tilde;o de indivíduos que vivem sob determinado sistema econômico e político e que são obedientes a normas, leis e instituições necessárias ao agrupamento como um todo.

Cultura e sociedade, enfim, constituem os pares dicotômicos do certo/errado, justo/injusto, jurídico/antijurídico.

Inúmeros mitos fundantes de nossa cultura não reconheciam o aspecto hediondo do incesto e da pedofilia. A mitologia grega e a Bíblia católica são ricas em narrativas envolvendo relações incestuosas. Com o avançar do pensamento e, por consequência, do conhecimento, repudiaram-se comportamentos aceitos primordialmente e, de forma quase universal, as relações sexuais envolvendo pais e filhos passaram a constituir tabu de tal magnitude a merecer o olhar acurado da psiquiatria.

Freud debruçou-se sobre o tema em Totem e Tabu, referindo que as famílias pertencentes a determinado totem (do tigre ou da água, por exemplo), embora perigoso para os outros, reconhece e poupa os seus próprios filhos. Em quase todos os lugares em que encontramos totens, encontramos também uma lei contra as relações sexuais entre pessoas pertencentes ao mesmo e, consequentemente, contra o seu casamento. O tabu representaria uma proibição primeva forçosamente imposta por uma autoridade de fora e dirigida contra os anseios mais poderosos a que estão sujeitos os seres humanos. O totem seria a família do indivíduo, enquanto que o tabu, as proscrições a que estava sujeito.

Pedofilia e incesto trilham o mesmo caminho. Se na primeira têm-se as relações sexuais entre adultos e crianças, quase sempre maculadas por relações de parentesco, na segunda encontra-se a conjunção carnal entre parentes ligados por estreitos vínculos de consanguinidade..

Da afirmação acima, constata-se a força da cultura sobre os que vivem sob o seu tempo. O incesto, assim como a pedofilia, é praticado, em sua esmagadora maioria – e tanto retrata a realidade dos processos que assomam ao Poder Judiciário de nosso país – por indivíduos do sexo masculino. Os estereótipos do gênero são reforçados pelo discurso repassado de geração a geração. Dos homens são exigidos, como atributos da masculinidade, comportamentos agressivos, virilidade, coragem e, sobretudo, potência sexual. Das mulheres, esperam-se fragilidade, baixa competitividade e libido controlada. Tais comandos são mais visíveis em regiões onde o índice de pobreza e dominação masculina se faz mais presente, a exemplo do norte e nordeste do Brasil.

O crime descoberto no Maranhão, onde um pai estuprou a filha e passou a viver maritalmente com ela, gerando sete filhos, apesar de repulsivo e brutal, faz lembrar o preciosismo de Nietzsche ao dar a uma de suas mais belas obras o título Humano, Demasiado Humano.
 

*Desembargadora do TJRS. Artigo publicado originalmente no Jornal Zero Hora, edição de 16.06.2010.
Fonte: site judiciário e sociedade

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