Para professor Allan Beane que teve o filho morto por causa do bullying, a hostilidade na escola é disfunção de toda a sociedade. Educador há mais de 37 anos e pai de Curtis - que morreu em consequência de um vida inteira de bullying -, Allan Beane é hoje um militante da causa "mais respeito, por favor!" O autor de Proteja Seu Filho do Bullying diz que o problema não se circunscreve à juventude. É um mal de toda a sociedade, que de modo geral está mais tolerante à violência - nas ruas, nas escolas, dentro de casa. Estamos apáticos em relação a dor dos outros, e lentos demais para ir em defesa de quem está sendo rechaçado, pisoteado, humilhado. E ainda por cima, comenta Beane, gostamos de responsabilizar as vítimas de agressão pelas próprias indiscrições ("Também, com aquele vestidinho rosa, o que ela esperava?"). Somos nós, portanto, enquanto sociedade, que estamos disfuncionais.
Por que tanta agressividade entre crianças, adolescentes e jovens até na universidade?
Às vezes, adolescentes machucam colegas por inveja, ou para serem aceitos por determinado grupo, ou pelo simples fato de que temem se tornar vítimas de maus-tratos. Pode ser que admirem a independência, o poder e a popularidade do valentão da escola. Às vezes, porém, a causa do bullying é muito mais simples. Adolescentes agem dessa forma porque sabem que não terão que lidar com as consequências de seus atos. Como adultos, muitas vezes ignoramos as atitudes agressivas de nossos filhos, não os orientamos corretamente. Como professores, não somos atentos, não prestamos atenção ao que está acontecendo nos banheiros, corredores, escadarias e playgrounds da escola. Aliás, o bullying se tornou um problema econômico, além de comportamental. De acordo com a Associação Americana de Medicina, 160 mil crianças preferem ficar em casa com medo de serem agredidas em seu caminho até a sala de aula. Há pesquisas sugerindo que 7% dos estudantes de oitava série matam, ao menos, um dia de aula por mês. E, como grande parte do financiamento às escolas é baseado na frequência dos alunos, esse é um problema educacional de larga escala. A organização Plan International estimou o custo do bullying para o mundo: US$ 60 bilhões. Agora, o custo para a humanidade é bem maior. Nossas crianças ficam mais ansiosas, depressivas, doentes. O bullying existe desde o jardim de infância até a faculdade, e, mais adiante, no ambiente de trabalho. Não está restrito aos jovens. Ocorre em todas as comunidades, em todas as escolas, em todas as esferas da vida.
Se a escola é um microcosmo da sociedade e se o bullying é tão recorrente, o que isso diz sobre nós? Estamos menos cordiais?
Acho que houve uma deterioração no modo como as pessoas se tratam. Estamos menos dispostos a ajudar alguém em perigo, ou que está em uma situação de vulnerabilidade. Sempre houve bullys no mundo, mas acho que esse é um fenômeno mais presente em nossas escolas hoje. Sabe-se que crianças que estão sofrendo por dentro geralmente tentam transferir aos outros sua dor. Às vezes, são os adultos que maltratam seus filhos, gerando uma reação em cadeia de ódio e intolerância. Por sua vez, os filhos podem se tornar agressivos com os colegas para descontar a raiva que sentem dos pais. Bullying geralmente conduz a atitudes mais violentas, como brigas, facadas e tiros - nunca nos esqueceremos de Columbine. Acredito que vivemos uma "crise de espectadores", ou seja, muitas pessoas ignoram o colega que está sendo empurrado, socado, esmagado na lata de lixo. Nossa sociedade está passiva diante do desrespeito e pagamos um preço terrível por isso. Essa permissividade é desastrosa.
E qual a carga de responsabilidade dos pais?
Alguns pais fracassaram enquanto educadores. Não ensinaram aos filhos como controlar seu temperamento. Por falta de disciplina, muitos jovens hoje não têm freios. Se crianças não respeitam nem os pais, é provável que não respeitem mais ninguém.
Por que é legal ser o badboy, e não o geek?
Existem muitos elementos de nossa cultura pop que estimulam o bullying. A mídia, por exemplo, promove constantemente a violência e o conflito. A indústria do entretenimento tornou cool to be cruel. Reality shows são baseados em conflitos interpessoais e desrespeito - queremos ver o circo pegando fogo. Em séries de TV, os badboys são os heróis. Os filmes de highschool ensinam que para ser popular é preciso ser a garota má da escola. Esse comportamento é estimulado, racionalizado, justificado.
No que o bullying se diferencia da fofocas, dos apelidos, do puxão de cabelo?
Reconheço que o termo é usado em exagero. Esse é o perigo de todo rótulo. Por vezes, uma pessoa que foi maltratada uma vez é considerada vítima de bullying, quando, na verdade, o termo se refere a uma agressão rotineira. Bullying é um comportamento agressivo - físico, verbal, social, escrito, eletrônico - que tem intenção clara de machucar, física e/ou psicologicamente, e que se dá repetidas vezes. E o agressor não necessariamente é o mesmo, pode ser um grupo inteiro de alunos. Alguns especialistas discordam dessa definição porque entendem que, se alguém foi agredido, uma vez que seja, mas com tal intensidade de forma que se lembrará disso para o resto da vida, então isso deveria ser entendido como bullying. De todo modo, há que se atentar para o fato de que agressividade é um traço pessoal razoavelmente estável da personalidade de alguém. Por isso, pessoas que foram bullys enquanto crianças podem se transformar em bullys adultos - aqueles caras que tornam o ambiente de trabalho insuportável. É claro, alguns amadurecem e aprendem a controlar suas emoções, outros não.
Recentemente, alguns pré-adolescentes americanos decidiram se matar, no que tem sido chamado pela imprensa de uma "epidemia de suicídios por bullying". Até que ponto podemos responsabilizar os bullys por isso?
O "bullycídio" é a terminologia que se usa para falar de adolescentes que tiraram a própria vida por causa de bullying. Sim, essa é uma realidade que pouca gente conhece. Eu me refiro a milhares de estudantes que tentam - mesmo não tendo sucesso - se suicidar por causa das agressões constantes na escola. Dezenove alunos tiveram a coragem de me confessar que tentaram se matar. Têm medo de falar para os adultos o que está se passando por várias razões: sentem vergonha de não conseguir se defender sozinhas; temem que os pais só piorem as coisas fazendo um barraco na escola, por exemplo; ou já viram outras crianças delatarem o bully sem que nenhuma providência fosse tomada. É claro que há jovens com problemas mentais, que vem de famílias desestruturadas e que apresentavam problemas anteriores. Mas o bullying é um fator que contribuiu para que a gilete afundasse mais forte no pulso, para que a mão virasse o pote inteiro de comprimidos, para que ele ou ela tivesse a coragem de chutar a cadeira.
O bullying deve ser criminalizado?
Acredito que na maioria das vezes nós culpamos as vítimas da agressão. Consideramos que são fracotes, quando, na verdade, são muito resistentes por aguentar alfinetadas diárias por tanto tempo. A solução recai sobre os pais e a educação que dão aos filhos. Somado a isso, a comunidade e as escolas precisam ter programas eficientes para lidar com a questão usando estratégias de prevenção. Acho também que a sociedade deve responsabilizar mais os estudantes por conta de seus atos. Precisam saber que suas ações terão consequências verdadeiras. Já ajudei advogados em seis ocasiões, quando pais de crianças vítimas de bullying processaram as escolas por negligência. Leis apropriadas para evitar o bullying podem ser ferramentas poderosas para atuar em conjunto com outras soluções.
Uma pesquisa Care.com revelou que pais americanos temem mais "amigo de Facebook" do que do "estranho no playground".
Sim. Infelizmente, as redes sociais são usadas como ferramentas para humilhar, constranger, difamar e machucar os outros. Como jovens estão em contato direto por meio do Facebook, Orkut, Twitter, o bullying ultrapassa o período que os alunos ficam na escola e invade todos os momento de sua vida. Fofocas se espalham mais rapidamente e para mais pessoas, num efeito destrutivo que é potencializado pela universalidade da internet. Alunos já me confessaram que se sentem outras pessoas na internet. Têm menos medo de falar o que pensam. Eles ficam presos numa espiral de "cyber-maldade" e disputam para ver quem é mais cruel que o outro.
No Brasil, temos o trote de calouros, uma espécie de bullying institucionalizado, que às vezes foge do controle. Já houve histórias de jovens cobertos com excremento, queimados por ácido ou mortos por afogamento.
Passar por experiências de maus-tratos não ser um rito de passagem. Cada vez menos universidades toleram esse tipo de atitude e cada vez mais delas tomam medidas de segurança para prevenir isso. A vida universitária deveria ser um momento de crescimento intelectual e emocional. Infelizmente, alguns jovens se sentem no direito de postergar sua maturidade às custas de outros.
Existe um videogame que se chama Bully. Para avançar no jogo, é preciso infernizar ao máximo a vida dos coleguinhas. Que influência esses jogos têm, de fato, sobre o comportamento dos jovens?
É lixo. Não precisamos de jogos assim. Que valor eles têm? De que forma ajudam a tornar o jovem uma pessoa melhor? Não sabemos ao certo o impacto que os videogames têm sobre a mente e o comportamento, mas essa relação lúdica com a violência geralmente se manifesta da pior forma quando o jovem está com raiva, frustrado ou desapontando com alguma coisa ou alguém. As pessoas são livres para tomar as próprias decisões e saber o que é bom para elas ou não. O que eu quero deixar claro para os pais é que esse tipo de jogo pode influenciar as atitudes de seus filhos, mesmo que eles não tenham total consciência disso.
Fonte: O Estado de S. Paulo