Atuando nas Alternativas Penais com justiça terapêutica, conheci um jovem que cumpria pena por uso de entorpecente. Ele se parecia muito com um ex-jogador de futebol, atualmente aposentado. Parecia um sósia e trazia como apelido o nome do mesmo. Apresentou-se no NUPS solicitando que deveríamos rever o seu processo, buscava se candidatar ao cargo de vereador junto a Câmara Municipal de Cuiabá e isto o impedia. Vestia uma calça jeans com a barra toda em desalinho, um terno cujo manequim parecia ser maior que o seu. Usava um cinto preso ao pescoço e na ponta tinha um boneco de plástico amarrado, o boneco era de um herói infantil chamado ‘Gohan’; os pés estavam calçados com um velho tênis, bastante surrado. Perguntei a ele o que trazia no pescoço. Sua resposta foi enfática: - Minha gravata! O conduzi a sala de atendimento e fiz um levantamento diagnóstico de seu estado de saúde mental. O beneficiário encontrava-se em surto psicótico. Percebi que seu dedo indicador tinha sido decepado na ponta da falange, abaixo da unha e estava com a pele costurada, com linha de algodão, própria de costurar tecido. Indaguei-lhe sobre o corte. Respondeu-me que desejava ter uma linha telefônica celular e entrar em contato com a dupla Sandy e Junior. Então ele fez um sinal com a mão em forma de punho porrete e abriu um arco como um suposto arco-íris e disse ter feito isso através da luz. Diante do fato resolvi efetuar um encaminhamento para internação e tratamento junto ao hospital psiquiátrico da Capital. Mas o trâmite burocrático impossibilitou uma intervenção mais efetiva e a internação não aconteceu, o paciente acabou indo embora sem atendimento. Dias mais tarde o beneficiário retorna ao NUPS, eu apresentava problemas respiratórios e estava afônica, minha voz quase não se ouvia. Então ele teve uma fixação pelo fato de eu estar rouca e passou a perguntar sistematicamente: - Você está rouca porque chupou picolé? Respondi-lhe que não. Insistentemente perguntou novamente: - Você está rouca porque chupou picolé? Minha resposta foi não. E retomei o atendimento. A sala de atendimento era ampla, mas com a disposição dos móveis inadequada para este tipo de atendimento e cliente. A cadeira ficava encostada em uma parede, à mesa servia de anteparo, mas o beneficiário se posicionava próxima à porta, a única saída. Na sala não havia nenhum outro profissional. Eu estava só e sem voz. Enquanto eu efetuava o preenchimento da guia solicitando a internação. O beneficiário insistia na pergunta acima. Então fui enfática e disse que não. Mas ele estava sentado a minha frente com as pernas cruzadas na forma de quatro americano, o calcanhar esquerdo em cima da coxa direita, com a braguilha da calça aberta e levantava o olhar para os meus olhos e retornava o olhar para o zíper aberto. Seu delírio parecia dizer: se você está rouca porque chupou picolé, eu te ofereço um outro ‘picolé’ para resolver o problema. Fez isso por três vezes. Procurei manter a calma e pensei como contornar a mesa sem que fosse atacada. Em nenhum momento meu olhar foi direto para onde ele apontava. Levantei-me e me assegurei de ter em mãos algum objeto de peso caso eu precisasse me defender. Mas, tinha que agir rápido, antes que ele percebesse que eu queria escapar. Num impulso saltei na porta e abri já saindo fora, ele se recompôs como se nada tivesse acontecido e saiu do prédio. Mas voltou outro dia e ficava em silencio sentado no corredor num banco mais próximo a sala onde eu trabalhava. Parecia aguardar uma oportunidade, seu olhar estava muito esquisito quando eu entrei no corredor. Adotei o método de senha e sinal com os colegas servidores para que eu pudesse abrir a porta e seguir o atendimento a outros beneficiários. Felizmente com a gravidade dos fatos foi possível conduzi-lo ao hospital psiquiátrico e efetuar sua internação. O beneficiário ficou internado por 30 dias e depois fugiu. Com o laudo diagnóstico do psiquiatra em mãos foi possível constatar que o paciente fez uso de entorpecente ainda na adolescência e como tinha predisposição a psicose, desenvolveu um quadro de esquizofrenia paranóide com surto irreversível. Segundo a avaliação do médico não havia medicamento que pudesse trazê-lo de volta a realidade. Então pude concluir que tínhamos uma pessoa potencial para ser vitimizada ou vitimizar. Ainda naquele mesmo ano o beneficiário estava respondendo a um segundo processo, por tentativa de homicídio a uma mulher, onde tentou matá-la com uma arma branca e incendiar o seu carro. Veja que quantas pessoas estão por ai fazendo uso de entorpecentes sem se dar conta da potencialidade que ocorre quando a estrutura já o predispõe a uma doença mental irreversível.
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