* Dainir Feguri
Numa manhã de primavera estacionei meu carro embaixo de uma árvore cuja flor do cerrado mato-grossense em plena exuberância exibia suas pétalas mui pequeninas, na cor lilás. Ao retornar verifiquei que o capô do carro estava coberto pelas flores, o sentimento que tive foi de ter recebido da natureza um banho de harmonia. Colhi algumas flores, coloquei em um envelope de carta e guardei comigo.
Chegando ao local de trabalho, recebi um telefonema de um jovem que foi submetido a tratamento pela Justiça Terapêutica, por uso de entorpecente e tráfico de drogas. Ao telefone, disse que estava me ligando porque queria se despedir, que iria acabar com a própria vida, encontrava-se em profunda tristeza.
Pedi a ele que antes de qualquer atitude viesse até a central, local onde estava trabalhando para que eu pudesse me despedir pessoalmente. Horas mais tarde chegou, abatido, chateado e com muita revolta. Disse que tinha apanhado de um policial violento, que foi chutado, pisado e teve uma folha de telha tipo eternit (grossa) quebrada em suas costas. Estava cansado desse tipo de abordagem. Questionava o fato de ser negro e morar e estar na periferia.
Este jovem apesar do vicio tem uma história de vida que vale a pena rever. Trabalhava como churrasqueiro no período noturno, chegava às 16 horas no trabalho e saia apenas quando o ambiente fechava. Respondia por tráfico de entorpecente porque tentou levar maconha para um colega no presídio que estava com síndrome de abstinência. E fazia uso de entorpecente como maconha e pasta base.
Sua baixa-estima se dava por um sentimento de culpa que carrega ainda hoje. Uma situação trágica ocorrida com o pai. Ainda menino ajudava seu pai na mesma tarefa laboral (churrasqueiro). O pai pediu a ele para acender o fogo da churrasqueira. O garoto ao tentar acender o fogo houve um acidente com álcool no fundo do recipiente, seu pai sofreu queimaduras graves, inclusive porque inalou o fogo e teve seu esôfago queimado, sendo isto a causa de sua morte. Até então este jovem procura meios de aliviar a sua culpa e se percebe como alguém que não deveria viver. Mas este não é o motivo que ele queria se matar.
Vendo a tristeza que apresentava em seu semblante, disse algumas palavras de conforto e consideração e pedi a ele que aguardasse um pouquinho mais que eu lhe daria um presente. Peguei um outro envelope e coloquei dentro dele três florzinhas do cerrado que eu havia colhido. Dobrei o envelope e entreguei a ele. Imediatamente este jovem abre o pequeno pacote e olha dentro como que quisesse entender o que eu havia colocado ali. Quando viu aquelas flores em suas mãos, abriu um largo sorriso e disse: - Doutora a senhora nem imagina a luz que estou vendo no fundo do túnel. Muito obrigado. Disse isso e se afastou sem explicar nada.
Num outro dia retornou para falar comigo. Havia um beneficiário que respondia pelo uso de drogadição que estava sendo atendido. Pensei em apresentar um ao outro, já que ambos tinham fatos significativos e parecidos, além de que o processo de identificação ser maior e com mais eficácia. O drogadito não tem identificação no atendimento com pessoas que nunca fizeram uso de entorpecente, esta é a primeira barreira para ajudá-los. Só permanecem no atendimento quando percebem a aceitação incondicional por parte do terapeuta.
A frente da mesa mais duas cadeiras foram colocadas e pedi a eles que se sentassem e trocassem algumas idéias, enquanto eu terminava um relatório que estava pendente. Daí então faria o atendimento a ambos.
Começaram a conversar. Após alguns momentos o jovem desabafa com o outro beneficiário dizendo: “Cara, pra você vê como são as coisas. Faz um tempão eu plantei um pé de maconha lá em casa, cuidei, ela cresceu, deu folhas. Daí colhi todas as folhas, mas guardei uma que colei numa nota de um dólar. Guardei na minha carteira. Meu talismã. Quando um dia desses o policial (...) invocou comigo, me chamando de vagabundo e veio fazer uma revista. Pediu meus documentos, mas não esperou eu entregar já tomou minha carteira. Ele achou a folha seca e jogou ela no chão, pisou com as botas a folha no chão. Depois resolveu me descer a porrada, quebrou uma folha de eternitão nas minhas costas. Mas o que mais me doeu foi ele ter destruído ela. Tive vontade de morrer”.
Veja que naquele dia que apareceu deprimido não trouxe este relato, mas após ter ganhado as flores do cerrado, fez uma associação livre e aquilo lhe deu uma nova esperança. Reflita comigo: flores e frutos.
Algum tempo mais tarde este jovem voltou ao atendimento completamente delirante. Havia desistido do emprego. Estava em surto por abuso de consumo de pasta base. E tinha tido mais confrontos com a polícia. Tinha delírios de grandeza – megalomania, crises paranóides, perda significativa de peso. Estávamos no verão. Então ele me disse: “Doutora dia de chuva é muito bom. Porque faz crescer muiiita maconha!”.
Este foi o ultimo atendimento, sua mãe foi orientada a levá-lo a um hospital para desintoxicação, o que foi feito mediante o encaminhamento. Quatro anos depois voltei a procurá-lo em sua casa, quando o vi nem o reconheci, apresenta massa corporal melhor e trabalha como lavador de carro num lava jato da cidade.
Nenhum comentário:
Postar um comentário