quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Identidade é um processo que se baseia na escolha

* Dainir Feguri
O convívio com adolescentes em projetos me proporcionou uma prática que favoreceu o entendimento deste processo de identificação. Após algumas semanas de execução de um projeto na Companhia da Policia Militar Comunitária, num bairro periférico da capital. Já tínhamos muitos jovens inscritos e freqüentando, eram mais de duzentos adolescentes. A procura se dava pelas famílias, os próprios jovens e dirigentes de escolas da região. Foi no primeiro passeio de inclusão social que conhecemos um novo integrante. Geralmente saiamos de ônibus com os garotos e garotas e tínhamos uma manhã de lazer, apresentações, esportes, e orientações. Naquela manhã faríamos uma visita no Comando Geral da PMMT. O objetivo seria criar uma aproximação entre jovens de comunidade e policiais, além de apresentar a eles o setor onde a policia faz o registro das chamadas 190. Orientá-los sobre a importância deste atendimento para a sociedade e conscientizá-los de que o trote (indiscrição feita por telefone) não é viável, pois ambos ter perdas significativas, tanto o comando quanto a sociedade. A caminho do Comando Geral, o percurso seria de aproximadamente 25 km. Todos os adolescentes estavam orientados sobre como se comportar tanto no percurso, quanto no local da visita. O nosso novo integrante recém chegado que chamarei de LY não havia passado pelo processo de sensibilização. Rapaz de 16 anos, forte, 1,80 de altura foi encaminhado para o projeto pela direção da escola. Queixa: comportamento inadequado, violento e que a última de suas estripulias foi tentar enforcar a professora porque não concordava com as notas que ‘ela lhe dava’, muito baixa. Ao entrar no ônibus apresentou comportamento como: cuspir nos transeuntes que trafegavam nas calçadas, ameaçar os colegas e confrontou com uma das facilitadoras que fazia parte do projeto. Ao ser chamado a atenção sobre o comportamento nefasto, revidou com ameaças. Durante a visita adotamos a postura de incluí-lo no processo educativo, delegando tarefas e co-responsabilidades para ele. Por exemplo: tomar conta do estoque de bolas e entregá-las as equipes que participariam de jogos e brincadeiras. Diria que após alguns deslizes, LY conseguiu entender o seu novo papel no grupo. Os encontros se davam na comunidade do bairro Pedra 90 durante a semana e por quinzena fazíamos passeios de inclusão social em zonas urbanas e rural. Após alguns meses percebi que mesmo o esforço de tentar passar a abordagem sobre o processo evolutivo do adolescer saudável e outras temáticas, LY parecia permanecer sem nenhum progresso. Passei a observá-lo mais de perto e coletar novos dados sobre como era sua convivência no bairro. LY repetia o ano e não conseguia terminar o ensino fundamental, foi expulso da escola. Seu porte físico o favorecia em levar vantagens sobre os demais. Então LY me procurou e disse que sua turma o havia questionado sobre com quem ele deveria escolher ficar. Perguntei: - Quem é a sua turma? Respondeu: - Minha gangue. Indaguei: Quem você escolhe? Agitou-se de um lado e de outro, girou o boné sobre a cabeça, sorriu sem graça e disse que estava com dúvidas. Então prossegui. - O que você ganha sendo integrante do grupo deles? Imediatamente respondeu sem pestanejar: - Respeito. Perguntei: - O que você faz que eles tenham esse sentimento por você? Voltou a sorrir e começou a falar com um ânimo que lhe conferia um ar de vantagem. – A gente saí por aí armado e azara as pessoas nas feiras, bate nos carinhas... - Ok! – E o que você encontra aqui no projeto que o faz sentir essa dúvida em escolher? Respondeu: – Sei lá, acho que é o jeito dos caras nos tratar, os encontros são legais, é outra turma, diferente, mais chatinha, mas aqui a gente não corre o risco de morrer. Então parei as indagações e apresentei a ele uma garota da mesma idade que estava participando conosco e que outrora foi ex-integrante de uma gang. Deixei os dois sozinhos para que pudessem falar sobre o assunto. A pessoa mais indicada para o aconselhamento seria um outro adolescente mais orientado para fazê-lo compreender os fatos. Pois adolescentes quando se sentem pressionados só escutam outro adolescente. LY desistiu da gangue e permaneceu no projeto. Após três meses de acompanhamento e orientação intensiva aos jovens do projeto, num momento de fechamento das oficinas sobre violência, os adolescentes criaram uma expressão para que todos dissessem junto como símbolo de sua escolha. A frase: ‘Pela Paz’. Havia quarenta adolescentes nesta oficina e após terem revisado a temática ‘Por uma cultura de paz e não violência’ – sinalizei para que após a contagem de 1, 2, 3, todos diriam a frase ao mesmo tempo. Para minha surpresa enquanto trinta e nove gritaram pela PAZ, um integrante fez o inverso, gritou pela VIOLÊNCIA. Apesar de ser minoria na voz, sua liderança se destacou entre os demais e chocaram alguns, assim como fez com que outros o admirassem pela ousadia de confrontar a orientadora. O autor do grito? – LY! Novamente estava diante do começo, parecia que tudo que havia trabalhado nas oficinas de nada valeu. Estávamos na estaca zero. Passei a investigar seus familiares, pais, parentes, vizinhos, e nada encontrava. Todas estas pessoas eram ok. Sem nenhum desvio de conduta. Já sem esperanças de entender o que havia por trás daquele comportamento, foi que o inesperado aconteceu. Novo passeio numa manhã de domingo. Desta vez faríamos o encontro num distrito vizinho, chamado Coxipó do Ouro. Passaríamos o dia numa chácara e voltaríamos ao final da tarde. A programação se deu com tranqüilidade. E quando retornávamos, de ônibus, me sentei no primeiro banco, na janela, a direita do motorista. LY vinha na frente em pé na escada, próximo a porta, conversava sobre o passeio. O ônibus seguia lentamente pelas vielas estreitas, sem asfalto com pequenos sulcos feitos pela erosão das chuvas, as casas no estilo ranchinho, de pau a pique, algumas cobertas com telhas, outras com sapé. A paisagem fazia aquele lugar parecer sereno. Foi quando passamos enfrente a uma casa, uma pessoa do sexo masculino caia pela porta afora, de costas, tombando para trás, outras pessoas estavam atônitos, em pé, inertes, com os olhos arregalados como se não acreditassem no que viam. A vítima tinha uma perfuração na cabeça, na fronte, sangue jorrava e seu corpo estremecia de forma compulsiva ao chão. O ônibus prosseguiu viagem e fiquei em silêncio. Aquela cena brutal me aborrecia. LY sorria ironicamente e me fez esta pergunta: - A senhora não gosta disso professora? Respondi calma e lentamente: - Não! Perde este rapaz que não poderá ir trabalhar amanhã, perde a família que terá que conviver com esta lembrança brutal, perde a comunidade que fica com mais um histórico de violência em sua cultura. LY então se lembra de um fato ocorrido na sua infância e passa a me relatar. “Professora, eu tinha sete anos de idade, estava indo comprar cigarro quando vi as pessoas na rua do Pedra 90, bairro onde moro, correndo e se escondendo. Então vi um homem vir correndo na frente e outro o perseguia. O de trás atirou em suas pernas e o cara caiu bem na minha frente. As pessoas gritavam para eu sair de lá, mas eu não conseguia, da cintura pra cima eu me agitava, mas as pernas parecia anestesiada e eu não conseguia dar um único passo. O homem com as pernas quebradas pelos tiros, estendia a mão para mim pedindo socorro. Foi quando o atirador se aproximou de mim, com o revólver na mão e desferiu mais tiros desta vez na cabeça da vítima já caída. O assassino olhou para mim, retirou um cigarro do maço, bateu as pontas do cigarro na caixa de fósforo, acendeu, deu uma tragada, e olhando para mim fez um gesto com o dedo indicador na boca que parecia dizer ‘silêncio’, guardou a arma e saiu andando. – Olha só professora o carinha morreu”. O episódio pelo que passamos fez LY ter um insight de uma cena traumática anterior em sua vida. A criança aos sete anos constitui um aprendizado da ética, do certo ou errado. E analisando o comportamento de LY e em outros momentos que podemos conversar ficou claro que no processo de identificação de LY se deu com a personalidade do assassino. Para ele o sentido de sobrevivência só permanece vivo quem for mais predador e agressivo do contrário poderá terminar igual à vítima. Atualmente LY tem 23 anos, uma família, uma linda filha, seu comportamento mudou completamente. Apesar de apresentar dificuldade financeira e o mercado de trabalho escasso devido à falta de formação profissional. Trabalha como segurança de festa (free lance). Muitas vezes LY procura orientação para a vida e infelizmente poucas vezes foi possível ajudá-lo. A falta de políticas públicas para jovens dificulta este trabalho que mais parece ser feito isolado, o que não deveria ser.

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